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A agenda do meu filho

O alarme toca às 6:50.

Olho para a agenda.

Com o tempo sei quantos minutos preciso de manhã para me arranjar, levar a minha filha à escola, estacionar o carro a horas de apanhar o comboio (olho para a agenda outra vez) e chegar a tempo da minha primeira consulta ou marcação. Ao longo do dia olho para a minha agenda frequentemente; faço cálculos mentais com o tempo que demoro entre consultas, deslocações, tempo que tenho ou não para almoçar, introduzo na agenda as horas a que os insubstituíveis avós poderão, se necessário, ir buscar a neta.
Calcular o meu tempo é uma necessidade.
Por sua vez, a minha filha acaba as aulas às 16 horas. Até lá o dia é regido pelo toque da campainha. Depois disso ela decide se vai para o atelier de artes, para o apoio a xadrez, para o apoio ao trabalho de casa, ou fica no recreio a brincar ou a conversar, o que é tão importante como qualquer outra atividade.
Ela não tem agenda obviamente. As crianças não deviam de precisar de ter agenda.
Mas é cada vez mais difícil.
Verdade seja dita, há uma pressão cada vez maior na nossa sociedade em transformar as nossas crianças em super-crianças, ou na verdade, apenas em adultos, nas quais os pais decidem uma série de atividades que foram incumbidas à criança muitas vezes sem o seu desejo ou interesse, para apaziguar medos dos pais.
Então a criança depois das aulas, corre, corre e volta a correr, porque sabe que tem que se preparar para sair da escola em 10 minutos, porque 1 minuto mais tarde e chega tarde à aula de mandarim que os pais disseram ser importante para o “futuro económico”, a uma criança para quem “futuro económico” ainda é poupar para comprar gelados no verão, aula de mandarim na qual a criança tem entre 4 a 5 minutos para arrumar a mala no fim porque demora quase 20 minutos a chegar à aula de patinagem.
Chega às 21 horas a casa.
Tem que dormir mais cedo hoje que amanhã ainda há o workshop de programação.
Toma banho, janta, tudo a correr, faz os trabalhos de casa, por vezes adormece enquanto os faz (“és mesmo calona!”). Entre o cansaço, as horas de sono erradas, a pressão e a falta de preenchimento pessoal, as notas descem. Os pais são chamados para falar com o Diretor de Turma. O problema é apresentado, o Diretor de Turma está preocupado com a criança, com as olheiras dela, com o cansaço, com as notas, com a irritabilidade.
“Vamos já resolver isso” – dizem os pais – “vai já para explicações na próxima semana”.
Gostava de dizer que isto é uma história exagerada, mas não é. Nem sequer é a única parecida que encontrei na minha prática profissional.
Há sem dúvida uma pressão para darmos cada vez mais aos nossos filhos, para estarem cada vez mais “preparados” para o futuro.
Falamos, pais, entre nós, e pensamos “Será que também a devia por na música? No mandarim? Na patinagem artística? E na explicação?”
Pior, pensamos no fundo “será que fica atrás dos outros?”.
Raramente pensamos em perguntar à criança o que ela quer ou se a criança quer.
Muitos destes casos mais extremos não existem por causa de uma preocupação legítima em apoiar a criança, dar-lhe experiências diferentes para além daquelas do contexto escolar, não têm como objetivo ajudar a criança a crescer pessoalmente ao experimentar algo novo…têm apenas por base o receio da inferioridade. O “ficar atrás”. Assim a criança não é um ser, um indivíduo com desejos, diferenças, interesses únicos, mas uma ferramenta de competição e comparação entre pais.
Muitas crianças beneficiam imenso de atividades extra-curriculares.
Para conviverem com crianças fora do âmbito escolar, para lidarem com a frustração, para crescerem enquanto individuo que está numa equipa ou num grupo…tudo isto tem propósito, tem objetivo.
No excesso, surgem as agendas, que não têm nada disto, são apenas uma ferramenta de controlo de tempo, e tal como a criança que agora precisa de uma agenda, também ela não é nada, é uma ferramenta de controlo de inseguranças alheias.

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