Recentemente fui pai novamente. Não tenho nenhuma história caricata para contar de uma corrida frenética a caminho da maternidade interrompendo uma consulta a meio.
Não tenho porque o nosso obstetra voltou-se para nós e disse "bem, eu não gosto de acordar às 4 da manhã com o telefonema para ir a correr e assim vocês vêm com calma, portanto vamos marcar isto, o que, dia 9 às 10?".
Para psicólogos isto é um pouco bizarro, afinal vivemos e damos representações emocionais aos contextos, às histórias, ao que se retira delas, e entre colegas no Centro Catarina Lucas falámos desta estranheza...embora rapidamente vimos os benefícios disto. Consegui planear consultas futuras, sabendo dizer quando estaria de volta. Não houve imprevistos que colocassem a equipa da receção numa correria de telefonemas...o controlo, deu muito jeito. Mas a que custo?
"Controlo".
É uma palavra relativamente simples, contudo, com significados e representações amplamente subjetivas e pessoais. Enquanto para alguns pode ser uma antítese da liberdade, para outros é sinónimo de segurança. Ou até um equilíbrio precário entre os dois.
Vimos e vivenciámos esta experiencia recentemente com a pandemia. A troco da segurança, introduziu-se leis, regras, independentemente de as considerarmos necessárias, que não deixaram de ser invasivas da liberdade e autonomia pessoal.
É um trade-off difícil de avaliar com clareza lógica e distanciamento emocional, e como digo frequentemente em consulta "depois do jogo ter terminado, somos todos bons treinadores de bancada". É fácil avaliar o exagero, os riscos que afinal talvez não fossem tão perigosos, ou as precauções que deveríamos de ter tomado e não o fizemos, depois das escolhas feitas.
As perturbações de ansiedade também vivem desta dificuldade.
A ansiedade, como escrevi anteriormente, é uma emoção que vive no futuro. Vive no futuro e alimenta-se da característica que este tem de ser imprevisível. Sendo imprevisível como impedimos algo de negativo acontecer? Como sequer posso saber que me vai acontecer algo negativo para o conseguir evitar? Na verdade não posso, mas a ansiedade patológica não aceita o sofrimento imenso desta impossibilidade de controlar o futuro e prevenir algo.
Portanto, a ansiedade cria mecanismos para criar a ilusão de controlo. Ritualizações, pensamentos mágicos, pensamentos e comportamentos compulsivos e obsessivos, que servem para dizermos à nossa mente "Se fizer X acontece Y", mitigando a ansiedade. O futuro já não é incontrolável, imprevisível, ansiogénico.
Voltando às questões da parentalidade, muitas coisas mudaram desde da altura da minha primeira filha. Nomeadamente as ferramentas que temos de controlo.
Portanto, parto planeado no dia e hora, para o obstetra ter a equipa que quer, levámos a nossa filha mais velha à escola e com calma, com agendas bloqueadas e pacientes remarcados, lá fomos com tranquilidade. Podíamos ter parado no super-mercado para algo que fosse preciso, afinal o GPS ainda nos dava tempo mas não queríamos arriscar (o imprevisível sabem?).
Temos agora fraldas com indicadores que ficam azuis para sabermos quando é preciso mudar a fralda. Consigo em tempo-real ver a fralda a encher com o indicador a ficar progressivamente azul!
Amigos com filhos recém-nascidos falaram-me das maravilhosas apps que usam onde posso tornar o meu dia-a-dia numa check-list que regista: quando o bebê acorda, quanto tempo passa acordado, que nível de vigilância tem, tempo que demora a adormecer, duração do sono, numero de movimentos durante o sono, quantidade, duração e frequência das mamadas e métricas após métricas para a quantidade, conteúdo e qualidade das fraldas.
Emprestaram-me uma segunda câmara de vigilância que se liga ao smartphone para também me dar um relatório de informações.
Tenho também em casa não um, mas dois (?) aparelhos parecidos com uma balança para colocar debaixo do colchão que me avisam de alterações na respiração.
A minha filha é saudável felizmente. Os filhos dos meus amigos também.
Mas enquanto pai galinha que sou a tentação de controlar, "saber se está bem", é grande. Não uso nenhum dos aparelhos ou apps que mencionei, mas é tentador. Claramente não estou sozinho se no espaço de poucos anos se desenvolveu toda uma industria em torno do quanto conseguimos controlar todo e qualquer momento e função dos nossos filhos. Brinquedos que não podem meramente ser brinquedos, mas ferramentas para estimular a skill que achamos que o nosso filho tem em falta. Atividades que não podem ser meramente lúdicas, etc.
A ilusão de controlarmos o imprevisível, o futuro, e consequentemente mitigarmos as nossas ansiedades vem com um custo. Vem com o custo da artificialidade que trazemos para estes momentos únicos das nossas vidas, a mecanização de tarefas naturais e do sofrimento de obviamente vivermos a vida a controlar estas ferramentas de controlo, acabando por nos tornarmos controlados pelo próprio controlo.
Pergunto-me até, como referi no texto https://www.catarinalucas.pt/post/a-agenda-do-meu-filho até que ponto a facilidade com que abdicamos da liberdade, da autonomia, da espontaneidade e do imprevisto, em troco da segurança e previsibilidade, continua e invade o resto da vida de um filho continuando até à sua vida adulta, mantendo na vida adulta a crença de que existe necessidade de controlar, programar e agendar a vida como se a vida em si fosse uma inconveniência.
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