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"Romantizar a Quarentena"




(os excertos de consulta abaixo mencionados foram devidamente autorizados pela pessoa e elementos identificativos como o nome, trocados)

Há um exercício que em consulta gosto de fazer com os meus pacientes: Identificar onde e de que modo os seus problemas lhes afetaram a vida.


Muitas pessoas vêm para consulta desesperadas, já no limite do que conseguem aguentar de sofrimento. Por isso, para o mal e para o bem, o problema às vezes até vem bem identificado. Sabem perfeitamente qual é o problema e querem passar às soluções.

Já, e rápido.


Parece-me que estamos a viver a quarentena imposta pelo novo vírus Covid-19 da mesma maneira. A quarentena é um problema que criou outros. Está identificado. Queremos uma solução, rápida, instantânea, mas também "bonita" e graciosa.


Devemos procurar soluções, sem dúvida alguma, mas na ânsia, frequentemente nos esquecemos de identificar os problemas concretos.

"Estar em casa é chato", "ah isto é um aborrecimento", entre outras expressões pouco elaboradas abundam. O que é isto do "chato"? O que é isto de ser aborrecido? Traduz-se em que concretamente?

Recordo uma consulta na semana passada, na qual a pessoa dizia:

"Bem, no meio disto tudo há tempo para desenvolvimento pessoal, fazer algumas coisas que me enriqueçam, ler ali uns livros, talvez (...)" - Devolvi um facto muitas vezes mencionado na consulta - "mas o José não gosta de ler...".


Então começámos a pensar, o que a quarentena tirou de facto ao José?

Não tirou a capacidade de ler.

Esta pessoa nunca gostou de ler, a quarentena não lhe pode ter tirado algo que nunca teve, mas agarrou-se a esta solução instantânea e bonita, "ler".


Isto é perigoso, saltar para soluções que podem não ser as nossas nem as indicadas para nós ou a nossa situação.

Ler deve ser a solução para alguém. Não era para o José.

Mas parecia uma solução tão fácil e apetecível…só não era a dele.


É perigoso porque sem aviso estamos com a vida cheia de "soluções", que não estão a solucionar na verdade nada, continuamos a sentir estes problemas não-resolvidos em voz off, no fundo da nossa mente, e ficamos confusos: "mas por que raio me sinto mal se estou a ler/escrever/meditar/etc?".

- Se vivo num apartamento não posso apanhar sol no jardim.

- Se tenho que apanhar transportes para ir trabalhar para uma fábrica que continua aberta talvez não tenha tempo nem energia para fazer videochamada no fim do dia a todos os familiares e amigos.

- Se gosto de praia e vivo no meio da cidade não posso criar um areal na banheira e pedir uma caipirinha ao gato.


Peço desculpa pela linguagem, mas se ouço mais alguma celebridade a apelar ao tempo de quarentena para aprender a cantar ou algo semelhante como panaceia universal para a quarentena eu ofereço-me como voluntário para me desligarem a internet pelo bem da banda-larga.


Mas não vou divagar como algumas destas propostas idealizadas/romantizadas da quarentena advém de privilégio quando já melhores pessoas e textos o fizeram.


Atrás de portas fechadas e com ruas desertas parecemos todos iguais, mas não somos. Temos todos problemas diferentes e vivências diferentes que exigem respostas e soluções concretas e especificas para nós.


Voltando ao José, entre muitos problemas, reais e concretos que foram identificados, como tendo sido provocados pela situação quarentena, seguiu-se uma lista (exaustiva) de soluções, compromissos e meios-termos que a ele lhe faziam sentido, e a ele resolviam em parte algumas das suas questões.


Talvez não sejam soluções mágicas, talvez não inspirem vídeos, mas são as respostas reais e possíveis.

Mais importante, foram respostas criadas pelo próprio.




Crédito devido à Carolina Caldeira por me ter dado a conhecer a genial expressão “romancear a quarentena”

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