Por vezes, em contextos invulgares, começamos a pensar na natureza das relações com as pessoas que nos rodeiam, e foi justamente o que aconteceu com um episódio caricato na festa de aniversário da minha filha.
Ora numa festa de anos, com 12 crianças, estava um silêncio absoluto.
Cada criança trouxe para a festa de aniversário o seu smartphone. Estava explicado o silêncio.
Agora é algo recorrente, faz parte do nosso quotidiano, não podemos controlar as mudanças do mundo. O mundo em que vivemos não é imutável nem nós o devemos ser. Mas devemos definir os limites de como se estabelecem as relações humanas em nossa volta.
Naquele momento, o facilitador social do smartphone pareceu-me uma “chucha relacional”, daquelas tantas que nos distraem das qualidades, defeitos, feitios, em suma, características reais das pessoas com quem nos relacionamos.
Tal como a chucha não alimenta nem enche, o smartphone também não “alimenta” a relação, apenas dá uma sensação falsa de preenchimento num convívio superficial e emocionalmente pobre.
Não é apenas emocionalmente pobre, é descartável.
“Quem é a Mariana? É aquele perfil de facebook; uma vez mandei-lhe um link para aquele “youtuber” que eu gosto. Se ele gostou? Não sei. Eu gosto, mandei-lhe o link. Ele respondeu com um smile, deve ter gostado.”
Acaba por ser uma relação vivida no imediato, no egoísmo do que “eu gosto” e do que “eu recebo”. Não há uma troca real, nem tão pouco um diálogo, não permite o conhecimento do outro, não fomenta o auto conhecimento porque do outro lado não existe ninguém que nos coloque em dúvida ou nos faça pensar e sentir. Não nos faz crescer.
Como tal, enquanto pai, naquele momento pude decidir os limites das relações daquele grupo de crianças. Ou as deixava cada uma no seu smartphone, a trocar “likes” e filmes do youtube com a criança apenas alguns centímetros ao lado(!!), ou pedia para guardarem todos os telemóveis na cesta da entrada e, horror, terem efectivamente que falar, dialogar, discutir, discordar, encontrarem-se a meio caminho, enfim, relacionarem-se enquanto pessoas com vivências e personalidades diferentes.
Sem os smartphones à mão, o “like” vai ter que ser substituído pelo seu equivalente real, um “gosto de ti”, dito ou mostrado. Uma zanga vai ter que ser resolvida, acabe em entendimento ou não, mas terá que ser discutida, sentida, e não apenas simulada por um dos lados com um “desamigar” no facebook. Se não aprenderem em crianças a compreender as suas próprias emoções, as emoções que provocam no outro, como as demonstrar correctamente, e finalmente, como isso tudo se traduz numa dinâmica relacional real, que “alimenta” e permite o crescimento enquanto pessoas, dificilmente o fazem quando chegarem a adultos.
Não estou a condenar os smartphones. Cada pai terá os seus motivos, circunstâncias e razões pelos quais acredita ser necessário darem um ao filho. Seja como um utensílio de autonomia, liberdade e independência, ou para poderem ligar ou receber um contacto, seja que motivos forem, como tudo, as coisas, os objectos em si, não têm intrinsecamente um problema. O importante é o estabelecimento de limites.
O smartphone pode fazer parte da relação, pode complementar, pode ser aquilo que é, um objecto, uma coisa, tal como um jogo ou um boneco que se usa na relação. Não deve ser um substituto da relação. Caso contrário, quando usamos objectos como substitutos de relações, passamos a usar as pessoas nas nossas relações como coisas, e não como pessoas.
Pior, permitimos ser usados pelos outros como se também nós fossemos objectos.
No final, também me comprometi. Permiti um dos smartphone na festa. Foi usado num jogo em que os miúdos colocavam filmes cómicos no youtube, e tentavam aguentar coca-cola na boca sem se rirem. É um jogo, como outro qualquer, que usa um objecto, seja lá qual for, para permitir uma relação, esta sim, mais autêntica e genuína.
Felizmente (finalmente) havia barulho na festa de crianças.
Comments