(este texto foi escrito com a devida autorização da paciente)
A meio de uma consulta, quase sem contexto aparente, atira-me a paciente um desabafo de zangada resignação – “Parece que ficamos todos doidos aos vintes”.
Perguntei quem são estes “todos doidos aos vintes”, e foi-me enumerado um rol de amigos desta pessoa que tendo entre vinte e poucos e inícios dos trinta, eram segundo ela, “todos doidos”. Os “sintomas” eram bastante parecidos entre si, suores frios, dores psicossomáticas que davam diversas idas a médicos e exames que não resultavam em nenhuma doença orgânica, insónias ou sonolência excessiva, irritabilidade que levava a uma série de problemas e conflitos, taquicardia, e até, como esta pessoa me descreveu um colega de faculdade “que saiu a meio de uma apresentação para ir à casa de banho”. Surgiam também veladas outras questões que vinham nas entrelinhas: abuso de álcool, fobias incapacitantes, ansiedade social generalizada entre outras.
Ela contou-me isto em consulta numa tentativa de sentir que não estava só no seu sofrimento. Que havia uma “doideira dos vintes”.
Aproveitei este momento para fazer um resumo do que era a vida dela nesta faixa etária. Chegámos à conclusão rápida, que em 5 anos, esta pessoa passou de viver em casa dos pais sem nunca ter feito uma cama para ir viver sozinha, finalizar uma tese, conjugar uma vida académica com uma vida profissional e tentar fazer malabarismo com a vida pessoal, entre outras liberdades às quais nunca lhe tinham advertido sobre as responsabilidades anexadas.
Há de facto uma discrepância enorme entre o expectável, o fantasiado, e o real. Curiosamente lê-se corriqueiramente sobre uma adolescência “tardia”, e digo curiosamente porque a mesma sociedade que alerta sobre uma adolescência tardia fomenta esta. Tal como adolescentes, esta pessoa e os seus amigos, eram “crescidos” sem terem responsabilidades de adultos, tinham vidas suspensas “enquanto não faziam o curso”, “enquanto não arranjavam alguém”, “enquanto não tinham emprego na área”. Eternamente à espera do momento ideal para avançar com a vida. Nunca tendo sido preparados ou sequer realisticamente educados para uma mudança enorme nas suas vidas, eram miúdos perdidos em corpos de gente graúda.
Muitos dos pais destes jovens tinham um discurso paradoxal (os poucos pais que consegui ter em consulta, afinal, o problema era dos filhos e nunca da família). Entre um protecionismo desfasado da idade e maturidade dos filhos, existia uma exigência de que os filhos fossem como eles quando tinham a sua idade. Ao mesmo tempo que exigiam que os filhos tirassem uma licenciatura, e porque não um mestrado também, lamentavam-se que já podiam ser avós. Ao mesmo tempo que diziam para os filhos se concentrarem nos estudos, recordavam que aos 30 tinham sido chefes de secção num emprego para a vida que já não existe. O fantasiado era uma vida que aos 20 e poucos incluísse filhos, casa, emprego para a vida, um carro para o pai, outro para a mãe e um de família. O expectável, era um curso, muito trabalho, e que, no final, talvez a coisa se resolvesse pelo melhor. O real, era um curso que por vezes não era o idealizado, uma procura pelo emprego na área, precário e mal pago, filhos quase aos 40 depois de uma vida a tentar equilibrar um leque de relações falhadas por falta de tempo e investimento pessoal.
Viviam então entre o expectável com o objetivo de chegar à fantasia. O real, não era vivido.
Então o real, a vida concreta, era também uma vida suspensa, assente na idealização do que poderá ser, e a realidade que é.
Esta pessoa em consulta compreendeu um pouco mais sobre o que a trazia ali quando lhe traduzi as taquicardias, as dores psicossomáticas, e outras coisas pelo nome que tem: o vazio. Pendurada entre o que não é nem real nem concreto, vive-se no vazio, sabendo que a vida está a passar por nós. A esta pessoa ajudou elaborar objetivos concretos e realistas de vida. Também a ajudou ter a consciência que ser atirada aos lobos depois de anos de protecionismo, enquanto lhe vendiam uma vida onde o esforço compensa sempre, onde a frustração não existe, só lhe iria trazer sofrimento quando a realidade lhe bate à porta.
Em suma, não ficam “todos doidos aos vintes”, estavam a sofrer todos aos "vintes".
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